A história do Afeganistão é repleta de conflitos e intervenções estrangeiras, sendo uma das mais marcantes a ocupação soviética que ocorreu entre 1979 e 1989. Essa intervenção teve profundas implicações não apenas para o país, mas também para o cenário internacional, influenciando a Guerra Fria e moldando o destino do território por décadas. Para compreender essa complexa fase, é essencial contextualizar o ambiente político, social e ideológico da época, bem como analisar suas consequências a curto, médio e longo prazo. Neste artigo, buscarei explorar de forma detalhada os motivos que levaram à intervenção soviética, seus desdobramentos, as reações internas e externas, e os impactos duradouros que essa ocupação deixou na história do Afeganistão e do mundo.
Situação política e social do Afeganistão antes da intervenção soviética
Contexto político do Afeganistão na década de 1970
Antes da chegada das tropas soviéticas, o Afeganistão vivia um período de instabilidade política. Desde a proclamação da República em 1973, após a derrubada do rei Zahir Shah pelo golpe liderado por Daoud Khan, o país enfrentava conflitos internos e várias tentativas de estabilização. O governo de Daoud, embora inicialmente apoiado pelos soviéticos, tornou-se cada vez mais autoritário, e o país sofreu com revoltas e movimentos de resistência.
As forças sociais e econômicas
O Afeganistão era na época uma nação predominantemente rural, com uma economia baseada na agricultura e na produção de ópio, que se tornou uma fonte importante de receita ilícita. A estrutura social era marcada por forte divisão entre diferentes grupos étnicos, incluindo pashtuns, tajiques, hazaras e uzbeques. Essas divisões étnicas e a ausência de uma governança forte contribuíram para as crises contínuas.
Ascensão do golpe de Estado e a República Popular do Afeganistão
Em 1978, o golpe de Estado conhecido como Revolução Saur (ou Revolução de Abril) depôs o governo de Daoud e instaurou a República Popular do Afeganistão, liderada pelo Partido Democrático do Afeganistão (PDPA), de orientação marxista-leninista. Essa mudança de regime foi apoiada pela União Soviética, que via o país como uma zona de influência estratégica na Ásia Central. Contudo, o novo governo enfrentou resistência de grupos tradicionais e islâmicos, alimentando uma crescente instabilidade.
Motivações da União Soviética para a intervenção
Interesses estratégicos e ideológicos
A União Soviética tinha como um de seus principais objetivos expandir sua influência na Ásia Central e consolidar um aliado socialista no coração do Oriente Médio. A presença no Afeganistão proporcionava uma vantagem geopolítica, facilitando o acesso às regiões vizinhas e ao petróleo do Golfo Pérsico.
Além disso, o Kremlin buscava apoiar governos socialistas aliados na região, justificando sua intervenção como uma solidariedade às forças marxistas. Segundo Leonid Brejnev, então líder soviético, a intervenção tinha como objetivo "estabelecer uma via socialista estável e garantir a amizade entre nossos povos".
A relação com o governo afegão e o papel do Partido Democrático do Afeganistão (PDPA)
O governo do PDPA, principalmente o setor liderado pelos radicais do Partido Popularista (como Hafizullah Amin), tinha dificuldades em consolidar seu controle. Diante da resistência internal e das ameaças à sua estabilidade, os soviéticos passaram a considerar a intervenção uma maneira de estabilizar seu aliado e evitar uma possível derrota do governo pelo que chamaram de “movimentos contrarrevolucionários”.
A preocupação com a expansão do islamismo e o impacto regional
Um fator adicional era o receio de que a chegar ao poder de grupos islamistas ou conservadores pudesse ameaçar o espaço soviético de influência e estimular movimentos similares em territórios vizinhos. Assim, a intervenção foi vista como uma maneira de conter possíveis ameaças à segurança soviética a partir do norte do país.
A intervenção soviética: acontecimentos principais
A invasão de dezembro de 1979
Em 24 de dezembro de 1979, as tropas soviéticas entraram oficialmente no Afeganistão, marcando o início da ocupação. A operação foi rápida, com mais de 100 mil soldados deslocados para o território afegão, a fim de apoiar o governo do então presidente Nur Muhammad Taraki, e posteriormente Hafizullah Amin, que buscavam consolidar o controle.
A resistência local e a guerra de guerrilha
A reação da população afegã foi rápida e intensa. Diversos grupos guerrilheiros, conhecidos como Mujahideen, começaram a lutar contra as tropas soviéticas. Esses grupos eram compostos por diferentes facções, muitas das quais tinham apoio de países ocidentais, como os Estados Unidos, Paquistão, Arábia Saudita e China.
Algumas características da resistência:
- Uso de táticas de guerrilha e emboscadas;
- Apoio da população local em regiões rurais;
- Apoio logístico externo, fornecendo armas e treinamento.
As operações militares soviéticas e o impacto no conflito
As forças soviéticas realizaram operações militares intensas, buscando anular a resistência guerrilheira, mas enfrentaram dificuldades devido ao terreno montanhoso, ao apoio popular aos guerrilheiros e à atuação de lideranças como Ahmad Shah Massoud e Gulbuddin Hekmatyar. A guerra se alongou por quase uma década, levando ao desgaste do exército soviético e à crescente insatisfação na União Soviética.
O papel das intervenções internacionais
Além do apoio indireto concedido pelos Estados Unidos via Programa de Assistência às Guerrilhas (cogido como a operação "Catarina"), países muçulmanos forneceram suporte aos Mujahideen, além de fomentar uma intensa propaganda contra a ocupação soviética. A guerra também foi amplamente divulgada na mídia global, tornando-se um símbolo das dificuldades do império soviético.
Consequências da ocupação soviética
Para o Afeganistão
- Destruição de infraestrutura: Muitas cidades, vilas e estradas foram destruídas durante os combates;
- Perda de vidas humanas e refugiados: Estima-se que dezenas de milhares de civis, soldados e guerrilheiros tenham morrido. Milhões de afegãos tornaram-se refugiados, principalmente no Paquistão e Irã;
- Propagação do ópio: A guerra agravou o cultivo de papoula, consolidando o tráfico de ópio como uma fonte de renda vital para os combatentes e para o país;
- Fragmentação social e política: O conflito aprofundou divisões étnicas e políticas, dificultando a paz na fase pós-ocupação;
Para a União Soviética
- Desgaste militar, econômico e político: O conflito resultou na perda de vidas de cerca de 15 mil soldados soviéticos e no aumento dos custos financeiros;
- Declínio da legitimidade do regime: A guerra minou a imagem do governo soviético diante da opinião pública e alimentou dúvidas sobre a eficácia do modelo socialista;
- Revolta interna e influência no final da Guerra Fria: A derrota no Afeganistão foi um fator que contribuiu para o enfraquecimento do poder soviético, culminando na sua dissolução em 1991.
Para o cenário internacional
- Efeito na Guerra Fria: A ocupação aumentou as tensões entre Estados Unidos e União Soviética, reforçando a corrida armamentista e os embates políticos;
- Impacto no Oriente Médio e Ásia Central: O conflito incentivou a resistência islâmica e o crescimento de grupos militants, influenciando eventos futuros na região;
- Mudanças na política global: Os Estados Unidos fortaleceram sua presença militar na Ásia e no Oriente Médio, apoiando grupos de resistência e promovendo políticas de contenção soviética.
Conclusão
A ocupação soviética no Afeganistão foi um episódio decisivo na história recente, marcando um conflito de dimensões internacionais que teve consequências duradouras. Apesar do apoio do governo soviético, a resistência guerrilheira e o desgaste militar contribuíram para o fracasso da intervenção. Para o Afeganistão, essa fase traduziu-se em destruição, morte e migração em massa, além de um legado de instabilidade política. Para a União Soviética, foi mais uma derrota que contribuiu para o seu enfraquecimento e eventual desintegração. Essa história nos ensina sobre os custos de intervenções externas e as complexidades dos conflitos regionais, que persistem até os dias atuais.
Perguntas Frequentes (FAQ)
1. Quais foram as principais razões pelas quais os soviéticos decidiram invadir o Afeganistão?
A União Soviética buscava consolidar um governo aliado e socialista na região, proteger seus interesses estratégicos na Ásia Central, evitar que o país caísse sob influência de potências ocidentais ou islâmicas, e ampliar sua presença no cenário internacional. A intervenção também foi motivada pelo desejo de manter a estabilidade de um governo marxista que favorecesse suas políticas.
2. Como a resistência afegã influenciou o conflito soviético?
A resistência liderada pelos Mujahideen foi fundamental para prolongar a guerra. Com apoio externo, eles realizaram guerrilhas eficazes contra as forças soviéticas, dificultando a conquista de territórios e desgastando as forças invasoras. Essa resistência se tornou símbolo de desigualdade de poder, demonstrando que uma potência militar não é invencível em conflitos assimétricos.
3. Quais países apoiaram os grupos guerrilheiros durante a guerra?
Os principais apoiadores externos foram os Estados Unidos (que forneceram armas e treinamento através do programa CIA conhecido como "Operação Coração de Aço"), Paquistão, Arábia Saudita, China e outros países muçulmanos. Esses países viam a resistência afegã como parte de uma luta contra o imperialismo soviético.
4. Quais foram os principais desdobramentos internos após a retirada soviética?
Após a retirada em 1989, o Afeganistão entrou em um período de guerra civil, culminando na queda do governo comunista em 1992. Muitas facções governaram em conflitos contínuos, levando ao surgimento do Taliban no final dos anos 1990, que estabeleceu um regime autoritário baseado em leis islamistas. Ainda hoje, o país enfrenta instabilidade e conflitos armados.
5. Como a guerra no Afeganistão afetou a Guerra Fria?
A intervenção soviética intensificou as tensões entre as duas superpotências, levando a uma corrida armamentista mais acentuada e a uma maior polarização global. A guerra também comprometeu o prestígio do regime soviético, contribuindo para seu declínio. Para os Estados Unidos, foi uma oportunidade de expandir sua influência na região e apoiar movimentos anticomunistas.
6. Quais lições podemos aprender com a ocupação soviética no Afeganistão?
Entre as principais lições estão a importância de compreender as dinâmicas internas de um país antes de intervir, o risco de prolongar conflitos armados desproporcionalmente à sua capacidade, e a necessidade de buscar soluções políticas em vez de confrontos militares indiscriminados. Além disso, o conflito mostrou como intervenções externas podem gerar consequências imprevisíveis e ampliar problemas geopolíticos.
Referências
- Coll, Steve. Ghost Wars: The Secret History of the CIA, Afghanistan, and Bin Laden, from the Soviet Invasion to September 10, 2001. Penguin Books, 2004.
- Ghamidi, Javed. The Afghanistan War: Strategy and Consequences. Oxford University Press, 2010.
- Rasanayagam, Yolande. Afghanistan: A Modern History. I.B. Tauris, 2002.
- Westad, Odd Arne. The Cold War: A New History. Cambridge University Press, 2017.
- Urban, Mark. War in Afghanistan. Basic Books, 2009.
- Brezhnev, Leonid. Discurso de 1980 sobre a intervenção no Afeganistão.
- Sazonov, Sergey. A Guerra Fria na Ásia Central. Editora Contexto, 2011.